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"Sou a primeira da família a ter um curso superior"

Publicado: Terça, 09 de Março de 2021, 02h36 | Última atualização em Sexta, 12 de Março de 2021, 19h43

Este é o terceiro texto da série de relatos "História de vida de mulheres do Amapá: lembrar, contar e resistir”. Nele vamos conhecer a história de superação de Marcileide Pimenta, servidora pública do Campus Laranjal do Jari do Instituto Federal do Amapá (Ifap) que teve sua vida drasticamente transformada por uma gravidez aos 16 anos. Esse fato trouxe desafios e responsabilidades que abreviaram sua adolescência, mas não lhe impediram de sonhar e de transformar muitos desses sonhos em realidade. Vamos a sua história:

Meu nome é Marcileide Pimenta de Freitas. Nasci em 23 de março de 1986 no hospital do Distrito de Monte Dourado, Almeirim/PA. Já no segundo dia de vida, atravessei o rio Jari e fui viver em Laranjal do Jari/AP, que na época era conhecido como Beiradão e era distrito de Mazagão/AP. Tive uma infância difícil, mas gostava muito de brincar. A infância era dividida com os trabalhos no sítio da minha família, na pesca com malhadeiras e os trabalhos domésticos. Já a diversão era brincar em baixo das pontes e palafitas e também tomando banho no rio Jari. E foi assim que cheguei na adolescência. Entre os 10 e 14 anos, ia pras ruas trabalhar vendendo chop, pastel, coxinha. Aos 16, já cursando o primeiro ano do ensino médio, descobri que estava grávida. Tive que assumir uma responsabilidade que não era só minha, a de ser mãe.

Em 2003, cursando o segundo ano do médio, nasceu minha primeira filha, Livia Gabriele Freitas Ferreira. Aos 18, com o ensino médio concluído, passei a trabalhar em lanchonetes, bares, mercados, restaurantes, enfim, tudo o que eu queria era o sustento da minha família. Aos 21 anos, fui mãe novamente, um parto prematuro que quase ceifou a minha vida e da minha segunda filha, Laís de Freitas Ferreira.

O tempo passava, mas um sonho habitava no meu coração: eu queria cursar um ensino superior ou técnico. Tudo o que eu mais sonhava era ingressar em uma faculdade e ser aprovada em um concurso público. Em 2009, me separei do pai das minhas filhas. Foi uma época difícil, as pessoas não apoiam as mulheres que têm a coragem de recomeçar. Passei inúmeras difuldades e depois de um ano da separação, iniciei um novo relacionamento com alguém amável, responsável, compreensivo, um ser humano sem igual. Chamava-se Marcelo. Nosso relacionamento durou nove meses, até que no dia 6/9/2011 ele sofreu um acidente e não resistiu. Fiquei viúva  aos 25 anos. Tive que começar novamente.

Um certo dia, ouvindo um programa de rádio local, parei minha atenção na entrevistada, que era a prefeita. Ela avisou em primeira mão que Laranjal do Jari ganharia uma escola técnica. Naquele momento, minhas esperanças se renovaram e eu compreendi que minha oportunidade de formação estava chegando. Porém, o que eu não imaginava é que aquela escola técnica se tornaria o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Amapá (Ifap) e que o sonho de formação se concretizaria com a aprovação no concurso e que eu seria servidora efetiva daquela instituição. Em meados de 2010, uma equipe do Instituto Federal do Pará (IFPA) compareceu ao mesmo programa de rádio para informar que estavam abertas as inscrições para o primeiro  concurso do Ifap para técnico administrativo.

Eu quase não pude fazer a prova, pois não havia quem ficasse com a minha filha de dois anos. Mas eu consegui. Fiz a prova e fiquei em sétimo lugar para o cadastro de reserva. Fui nomeada e, em 14 de fevereiro de 2013, tomei posse.

Em 2012, depois da viuvez, me dei a chance de viver o amor novamente e eu e Camilo estamos juntos desde então. Foi ele, meu esposo, quem me incentivou a estudar e então fui firme em busca da realização do meu sonho. Me formei em Técnico em Serviços Públicos no Ifap (2015), curso superior de Tecnologia em Gestão Pública (2016), Licenciatura em Pedagogia (2018), pós-graduação em Gestão e Docência no Ensino Superior (2019).

No ano de 2018, aos 32 anos, fui mãe novamente. Dessa vez veio o Henry Cristóvão e, em 2020, para nossa surpresa, recebemos o diagnóstico de autismo do nosso filho. Nossa vida ressignificou. Nos adaptamos a ele. Estamos aprendendo muito. Ele é nosso anjo azul.

A vida é difícil, ser mulher é mais difícil ainda. A vida foi muito dura comigo, mas eu fui mais dura que ela. Desde a infância ouço que os cargos públicos do Jari não são para nós laranjalenses. Mas hoje, não só eu mas diversos munícipes vêm provar que nós vamos transformar esse município. Os cargos públicos efetivos são dos filhos da terra sim.

Engravidar na adolescência não foi a primeira dificuldade da vida, mas com certeza não desistir naquele momento fez a diferença. Não evadir da escola e ir pra Mineko Hayashida grávida era um teste de resistência, mas fez-se necessário, pois o aperto naquele ônibus escolar nem se comparam com os apertos que a vida me deu. Hoje sei que a minha história de gravidez na adolescência continua se repetindo, porém, o que nós, como sociedade, estamos fazendo para ajudar essas mulheres/adolescentes que estão em estado de vulnerabilidade?

Minha adolescência foi deixada de lado para assumir a responsabilidade do lar, não tive o apoio das pessoas que eu queria, mas tive todo o apoio necessário vindo de muita gente do bem. Minha tia Maria Pimenta sempre foi uma mãe, minha tia Eunice, o Marcelo (in memorian) e hoje meu esposo Camilo Araújo e minha sogra Marineuma Araújo, e inúmeros outros amigos, que nem caberiam nesse espaço para citar. Quem diria que a ribeirinha, laranjalense, atendente de lanchonete, conseguiria chegar onde eu cheguei. Portanto, tenho uma coisa a dizer: não deixe de acreditar nos seus sonhos, pois somos mais fortes do que pensamos. Sou a primeira da família a ter um curso superior e isso é meu combustível diário. Agradeço a Deus por nunca ter me abandonado e aos que sempre acreditaram em mim. Estou conseguindo realizar inúmeros sonhos e tenho certeza que assim como eu, muitas outras jovens vão vencer. Gratidão é o que sinto por tantas vitórias.

 

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